tomanotas

sobre a vida em viagem

recortes sobre a vida em viagem e o imaginário em torno dela.

giovana madalosso para a folha de s.paulo

“nada como uma boa turbulência para nos tirar do estado anestésico de estar vivo. há poucos dias, eu voava para a minha cidade quando o avião começou a chacoalhar. (…) me sentindo um grão de açúcar na coqueteleira de deus – e o pior, sem nem acreditar em deus – passei rapidamente a minha vida em revista, me certificando de que as pessoas que amo podem viver sem a minha ilusória onipresença. tirando essas poucas relações, todo o resto pareceu tão pequeno quanto as casas lá embaixo. como se o voo fosse uma experiência de autoajuda em que você paga para ver o mundo em maquete e perceber a dimensão irrelevante do que é material.”

rilke shake, de angélica freitas

o que passou pela cabeça do violinista em que a morte acentuou a palidez ao despenhar-se com sua cabeleira negra & seu stradivarius no grande desastre aéreo de ontem


mi
eu penso em béla bartók
eu penso em rita lee
eu penso no stradivarius
e nos vários empregos
que tive
pra chegar aqui
e agora a turbina falha
e agora a cabine se parte em duas
e agora as tralhas todas caem dos compartimentos
e eu despenco junto
lindo e pálido minha cabeleira negra
meu violino contra o peito
o sujeito ali da frente reza
eu só penso


mi
eu penso em stravinski
e nas barbas do klaus kinski
e no nariz do karabtchevsky
e num poema do joseph brodsky
que uma vez eu li
senhoras intactas, afrouxem os cintos
que o chão é lindo & já vem vindo
one
two
three

mérito, de rachel cusk

“(…) passei quase toda minha vida adulta’, disse ele, ‘indo ou voltando de algum lugar. nunca estive em nenhuma situação sem a perspectiva de que ela acabaria ou sem ter de ir embora num horário específico, e, embora esse modo de vida às vezes fosse desagradável, num certo sentido eu tinha ficado viciado nele’.”

redemoinho em dia quente, de jarid arraes

“se eu pudesse escolher um serviço pra minha filha, seria um daqueles trabalhos bonitos, aqueles que a moça se veste com meia-calça e chapeuzinho, o cabelo todo cheio de gel grudado no coco da cabeça, e fica recebendo o povo dentro do avião. eu vi num filme uma vez. o avião voa tão alto que não dá pra ver, e as nuvens soltinhas, os passarinhos ficam até pra baixo. a moça serve bebida e comida, fala com todo mundo pelo telefone e dá pra ouvir alto.”

a alma perdida, de olga tokarczuk

“certa noite, durante uma de suas muitas viagens, o homem acordou no meio da madrugada em um quarto de hotel (…). olhou pela janela, mas não sabia muito bem em que cidade se encontrava, porque, vistas das janelas dos hotéis, todas as cidades parecem iguais. não sabia também como tinha ido parar ali, nem para que viera.”

esboço, de rachel cusk

“na pista do aeroporto de heathrow, o avião cheio de gente aguardou em silêncio o momento da decolagem. em pé no corredor, a comissária de bordo fez sua mímica com seus apetrechos enquanto a gravação tocava. estávamos com os cintos apertados, um mar de desconhecidos, num silêncio que parecia o silêncio dos fiéis na leitura da liturgia. ela nos mostrou o colete salva-vidas com sua pequena válvula, as saídas de emergência, a máscara de oxigênio pendurada num pedaço de tubo transparente. guiou-nos pela possibilidade da morte e da tragédia, da mesma forma que o padre conduz os fiéis pelos detalhes do purgatório e do inferno, e ninguém se levantou num pulo para fugir enquanto era tempo. em vez disso, ficamos ouvindo, ou entreouvindo, enquanto pensávamos em outras coisas, como se alguma firmeza especial nos houvesse sido conferida por essa aliança entre formalidade e destruição. quando a voz gravada chegou à parte relativa às máscaras de oxigênio, o silêncio continuou intacto: ninguém protestou, nem ergueu a voz para discordar daquele mandamento de que era preciso cuidar dos outros somente depois de cuidar de si mesmo. (...) eu não tinha certeza se isso era totalmente verdadeiro.”

carta a uma senhorita em paris, de júlio cortázar

“fechei tantas malas em minha vida, passei tantas horas preparando bagagens que não levavam a parte nenhuma, que aquela quinta-feira foi um dia cheio de sombras e correias, porque quando vejo as correias das malas é como se visse sombras, partes de um látego que me açoita indiretamente, da maneira mais sutil e mais horrível.”

#recortes #voo